terça-feira, 1 de novembro de 2011

E o defunto roncou

Eu, menino, ficava aterrorizado quando ouvia historias sobre cemitérios, mortos, fantasmas... Daí pra ter sonhos tenebrosos, que povoavam meus pensamentos, estava a um passo ou uma dormida. Em noites de temporais, então, o negócio aflorava, era só fechar os olhos e lá vinha pensamento a causar-me arrepios.
Contava-se naquele tempo o causo da "loura do cemitério". Era a história de uma loura linda, cobria seu corpo escul¬tural um longo vestido branco. Aparecia desacompanhada em bailes de nossa cidade e sua beleza e seu perfume eram alvo de comentários entre a rapaziada. É, meus amigos, a tal loura deixava todos com água na boca, e quando ia embora recusava oferecidas caronas, sempre chamava um táxi. Ela pedia para o motorista tocar para a avenida da Saudade, que naquele tempo era mão dupla.

Os rapazes a seguiam com seus carros, queriam descobrir onde morava tão formosa dama, mas ao chegar no portão do Cemitério da Saudade ela educadamente pedia para o motorista parar. "Mas parar aqui???", perguntava o motorista. E ela completava: "É, eu moro aqui." Abria a porta e descia. O taxista e os rapazes ficavam em estado de choque, a moça caminhava até o portão e entrava no cemitério, sumindo entre os túmulos. Essa história por muito tempo acompanhou minha geração, alimentava programas de rádio, enfim, era o maior auê.

Minha vida seguiu seu curso normal. Com 22 anos de idade passei no concurso de policial rodoviário, fui fazer a difícil Escola de Policiamento Rodoviário. Ficava imaginando eu fardado e qual seria minha reação quando deparasse com minha primeira ocorrência, meu primeiro acidente com morte, como iria lidar com todos os meus medos e meus futuros defuntos?

E este meu batismo aconteceu no meu primeiro dia de serviço. A Rodovia dos Bandeirantes não existia, estava escalado na Anhanguera, entre as cidades de Jundiaí e Jordanésia, região de muitas curvas. E na curva do quilômetro 44, numa tarde de muita chuva, um carro rodopiou, batendo nas defensas de ferro. O motorista voou pelo parabrisa, partiu a cabeça ao meio ao bater na quina da defensa, tal e qual a gente parte uma melancia. Seus miolos espalharam-se pela pista molhada e ao chegar no local, meu parceiro, sabendo ser minha estreia, procurou acalmar-me dizendo: "Buenão, veja como é nosso cérebro, olhe a energia que desprende dele", disse mostrando-me os miolos saltitando no asfalto enquanto a chuva caía forte. Saí dessa melhor do que esperava, passei no grande teste e toquei a bola pra frente.

Ao longo de minha trajetória como guarda rodoviário, perdi a conta de quantas pessoas mortas ou gravemente feridas tive nos braços, assim derrotei meus medos e mitos. O fato que narro agora ocorreu na Rodovia Candido Portinari, há mais ou menos vinte anos, entre a cidade de Batatais e o Rio Sapucaí. passava da meia-noite, um Gol bateu na traseira de um caminhão. Para lá fomos eu e meu parceiro Gioria. O caminhão evadira-se, ficando ali seu parachoque com sua placa, o motorista do carro fugira, não tinha carta. Ficou no local apenas o carro com um morto, seu rosto estraçalhou, batera na longarina do caminhão, era o passageiro, os dois eram professores de cursinho em Franca.

A noite estava feia, tenebrosa, parecia filme de terror com trovoadas e relâmpagos, mas ainda não chovia. Gioria foi até Batatais buscar a Polícia Técnica e eu fiquei de pé no acostamento, com o morto dentro do carro, quando a chuva desabou.

Sem ter onde me abrigar, entrei no carro e fiquei no banco traseiro. E o morto ali, na minha frente. Pedrão, lá do céu, mandava ver, eram raios e trovões ensurdecedores. De repente, ouço vindo do morto um ronco alto e longo, horroroso, parecia não ter fim. Acabava de levar um dos maiores sustos de minha vida, mas segurei a onda, caramba!!! Eu me perguntava: se o cara estava morto, como isso foi acontecer??? Entre tomar um chuvão e ficar com o defunto, rezei pro cara e optei por não me molhar.

Após algum tempo, que parecia um século, meu parceiro Gioria chegou com o perito.Contei-lhes o acontecido e o perito matou a charada, dizendo: "Buenão, quando o cara morreu seu pulmão estava cheio de ar e ele tinha que sair, pra cima ou pra baixo... Esse saiu pra cima."

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