sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Um pianista brasileiro

Caros amigos
Meu querido amigo Paulo Lakimé, músico de raro talento, escreveu este texto lamentando a partida de outro grande artista, o também pianista Leréia.
Buenão.




Um pianista brasileiro

* Paulo Lakimé
paulolakime@gmail.com

Uma das formações mais interessantes e tradicionais da história da musica contemporânea é o chamado trio. Quando alguém se referia á um trio não era preciso citar os instrumentos. Quando o sujeito ia a um bar noturno tomar um bom wiskie e ouvir uma boa musica e curtir um trio já estava subentendido. O trio se referia ao piano, baixo e bateria, evidentemente todos acústicos.
Tivemos grandes trios na nossa historia. Geralmente as pessoas se referiam ao trio citando o nome do pianista. Para citar alguns lendários trios tupiniquins, podemos começar por Luiz Eça trio, Cesar Camargo e trio, Cido Bianchi e trio, Luiz Carlos Vinhas trio, Zimbo Trio, Hermeto Pascoal também teve sua fase de trio, enfim, não caberia nestas poucas linhas a lembrança de todos. O trio executava principalmente a bossa nova e o jazz.
O pianista tocava o tema, geralmente grandes temas, e improvisava seguido pelo inconfundível suingue do baixo que também improvisava na sua hora e o ritmo marcado pela bateria quase sempre tocada com escova, um tipo de baqueta com fios de aço, que deixava o som mais aveludado, a cara do trio. Ribeirão Preto também teve seus grandes trios, em uma época onde a musica de qualidade era tocada em seus bares, é, por incrível que pareça, e não foram á vários séculos atrás, tinha até piano nos bares de Ribeirão.
Não se trata de simples saudosismo, coisa de gente velha, posso falar desta forma sem cair no politicamente incorreto, pois faço parte do time dessa gente velha. Trata-se sim de qualidade, do aspecto técnico da musica, que era executada artesanalmente, tecida fio por fio, elaborada sem eletrônica, por mãos e mentes calejadas por anos e anos de exposição á uma arte rica e sofisticada. Desculpem-me pela longa e monótona introdução, mas vamos ao tema. Nesta semana a musica brasileira e a jurássica formação dos trios perdeu um de seus grandes representante, o Leréia.      
Leréia, pianista mineiro la de Passos, que veio para Ribeirão na década de 80, que tocou nas grandes casas da época, no Bosque, no Conti, no JR da Nove, no Proust, que animou grandes noitadas em residências e clubes locais, seja acompanhando cantores, ou com seu piano inconfundível, um piano malandro, balançado, cheio de harmonias e frases jobinianas, frases que lembravam Bill Evans, Oscar Peterson, frases que foram elaboradas nos muitos anos em que atuou nos bailes, festas e noitadas por onde andou.
Leréia era o apelido de José Vasconcelos, que adquiriu quando moleque, la em Minas que queria dizer alegria, festa, bagunça. Leréia era um músico brilhante, militante, vibrante, apaixonado por sua arte, despertava no ouvinte uma catarse rara, envolvia-o de uma forma que me fascinava, tanto pelo som que eu ouvia quanto pela reação de quem lhe escutava. Durante muito tempo Leréia nos brindou com seus acordes, frases, e malevolências de um piano maduro, emocionante, até que uma madrugada na volta de uma viajem de Uberaba, sua Veraneio bateu na traseira de um caminhão.
Leréia não estava guiando, estava sentado no banco do passageiro, cochilava, ouvindo seus sons, deixados por ai no etéreo, no eterno, nas incontáveis noites passadas com velhos companheiros de sacerdócio da musica. Quando acordou com o som da batida como ele mesmo me disse, estava sem o braço direito. Cogitou-se o implante, mas não foi possível. Depois de uma longa recuperação e com problemas nas cordas vocais Leréia voltou com a família para Passos, onde com incrível superação voltou a tocar só com a mão esquerda. Eu mesmo em uma apresentação no Passos Clube presenciei seu desempenho no piano, tocando os baixos segurando o som com o pedal e com grande maestria preenchendo com acordes, coisa que nós pianistas fazemos com as duas mãos. Uma triste coincidência ou não, quando Leréia foi embora para Passos a musica brasileira entrou nesta literalmente fossa em que se encontra no momento.
Ribeirão deixou de ter seus bares com piano, com trios, para submergir nestes decadentes, deprimentes, barulhentos lugares com iluminação de farmácia e ruídos de péssima qualidade. Alguns poucos pianistas, baixistas e bateristas, e ouvintes que ainda estão neste plano, órfãos de um tempo de glamour ainda circulam por ai, e quando passam em frente de restos de prédios do que algum dia foram aquelas casas, hoje, sapatarias, lanchonetes, como Zumbis sentem uma saudade e uma mágoa enorme do que fizeram com a nossa bela e maltratada Musica Brasileira. Todos nós músicos e ouvintes devemos muito a você, Leréia.
È lamentável que a insustentável e efêmera leveza do ser, não só a leveza como a pequenez, bem como essa absurda inversão de valores não dê a esses grandes artistas a real dimensão e o seu devido lugar em nossa cultura. Aos que tiveram o privilégio de conviver e ouvi-lo tocar fica aqui a minha eterna lembrança. Vai com Deus meu amigo e até um dia, até talvez, até quem sabe...    

* O autor é píanista e músico da noite ribeirão-pretana

Um comentário:

  1. Boa tarde Bueno e Paulo, parabém pela ouvi muito o nosso querido Leréia tocar aqui em Poços de Caldas, com sua esposa Marta, no restaurante do meu Tio Dirceu Porto Vasconcelos, o Monte Carlo Bistrô. Era nosso primo, a família da minha mãe é toda de Passos Abraço, Marcelo Vasconcellos Camillo.

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