sexta-feira, 25 de julho de 2014

Almeirão com limão cravo

Bueno *
Vila Tibério, fui menino ali, poxa !!! Já vai longe esse tempo. Dia desses acordei meio que saudosista, daí comecei a rir feito uma criança quando faz uma arte e ninguém descobre o autor. Nessa onda abri a gaveta de minha memória, dei uma remexida bem lá no fundo e, de repente, me vi mais de 50 anos atrás, quando morava na rua Santo Amaro, na pequena Vila Amélia, que sempre digo pertencer à grande Vila Tibério.
Tudo que fazíamos era na famosa vila. Missa no Santuário Nossa Senhora do Rosário, cuja praça em sua frente chama-se Coração de Maria, praça esta que nas noites de sábado lotava de jovens. O lance era o seguinte: os homens ficavam parados e a moças rodavam por aqueles corredores ouvindo galanteios sem fim. Ali vi amigos iniciarem namoros, outros dando um fim.
Atrás da igreja rolava uma quermesse que era superfamosa na época, com seus correios elegantes e tudo mais. Aos domingos à noite o programa era o Cine Marrocos com suas filas homéricas, hoje ali é um banco. Poxa, o tempo voou.
Cheguei ali na velha rua Santo Amaro com onze anos de idade e saí com 22 para desbravar o Jardim Independência. Digo desbravar porque ninguém queria morar lá, era muito longe. Lá ainda moram um dos meus irmãos e três irmãs. Voltando ao “eu menino”, entre travessuras e coisas sérias acho que tive uma infância e uma juventude show de bola. Muito cedo meu velho pai conseguiu meu primeiro emprego, já com onze anos lá estava eu em uma oficina de bicicleta, onde aprendi todos os segredos da nossa famosa “magrela”.
Nesse tempo, eu amante do futebol e sem grana, quando o Botafogo jogava no Estádio Luiz Pereira, às quartas-feiras, lá ia eu com alguns amigos encarar o exercício de pular o muro, sempre pelos fundos. Esperávamos o time atacar e a torcida fazer aquele barulhão, daí o vigia corria até o alambrado para ver a jogada e era nesse momento que a gente pulava aquele alto muro. Num instante, como um corisco, estávamos na arquibancada, coisas de um tempo que adorei ter vivido.
Bateu saudades também do campo da Guanabara, que ficava pouco abaixo de casa. Lá vi grandes craques dando show. Nos finais de ano, os adultos organizavam uma disputa de solteiros contra casados e nós, moleques, armávamos um jogo de preto contra branco, era um tempo de pureza e ninguém pensava nesse tal de racismo tão em moda hoje, isso passava longe...
Nessa mesma época, via meu pai e minha mãe devorando uma travessa de alface ou almeirão – eu não comia nem a pau e só ficava imaginando os dois comendo mato. Numa de minhas férias escolares, era mês de julho, fui passar alguns dias na casa de minha tia e madrinha Cezira, na cidade de Casa Branca. Numa tarde, meu primo, da minha idade, inventou de passarmos a noite no sitio de seus tios próximo à cidade. Fui na maior alegria imaginando as surpresas da roça. Já no sitio, dei uma geral e vi que não tinha luz, era lamparina, e meu banho foi numa bica d’água que vinha de uma mina supergelada.
Eu, morrendo de fome, imaginava que no jantar viria um delicioso frango ou quem sabe uma leitoa assada. Nem bem sentamos e a tia de meu primo colocou na mesa arroz, feijão e de mistura... salada de almeirão temperada com limão cravo. Olhei, pensei um monte de coisas, mas senti que não poderia pipocar e mandei ver um prato daqueles de moleque. Resultado, me sai bem...Virei um devorador de saladas.
Hoje, aos domingos, quando vou à feira da Vila Tibério, na minha sacola não pode faltar o cheiroso e saboroso limão cravo, e por mais que tente não consigo dar à minha salada o mesmo sabor que senti naquela noite no sitio. Até hoje sinto na boca aquele sabor de almeirão com limão cravo.

* Cantor e compositor

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Tá faltando talento

Bueno *

Há alguns dias recebi um e-mail do meu querido e grande amigo Cleto, talentoso publicitário que também se aventura nas cordas de um cavaquinho. No tempo em que eu cantava no Restaurante Ponto Chic, ali na avenida Antonio e Helena Zerrener, na esquina com a rua Amapá, Cleto, frequentador assíduo, armava enorme mesa com amigos e famílias.
Eles jantavam, tomavam aquela cerveja no ponto e quando sentia-se no clima, Cleto retirava do estojo seu cavaquinho – dizia ter sido feito a mão por um artesão carioca. O apelido do instrumento era “Carioquinha”, é menor que os tradicionais, mas seu som era de se admirar.
Cleto se acomodava num canto do palco, abraçava seu pequenino parceiro, olhava pra mim e dizia: “Buenão, me dá um dó maior.”  Em seguida atacava com sua música preferida, “Carinhoso”, de Pixinguinha, com letra de João de Barro, o “Braguinha”. Eu o acompanhava com meu violão e meu parceiro Gercinho na timba.
Esta música foi escolhida como a canção do século, concorrendo com grandes clássicos brasileiros, ela ganhou de goleada. Pixinguinha a compôs em 1917 e sempre a tocava em suas apresentações. Por onde fazia shows, Braguinha, que na época era um jovem advogado, ia prestigiar e ouvir a música que tanto adorava, até que em 1931 pediu autorização ao músico para colocar letra em “Carinhoso”, que até então não tinha. Assim nasceu este clássico brasileiro.
Pois bem, no e-mail que Cleto me enviou, colocou toda sua indignação porque uma agência de publicidade deste nosso país usou sua música preferida para divulgar certa marca de carro, mudaram a letra enaltecendo a marca do veículo. Meu missivista até achou que os caras tiveram uma sacada legal, só não aprovou o fato de que mutilaram um clássico brasileiro, a letra da música.
Cleto foi até mais fundo dizendo que certas músicas brasileiras, como esta em apreço, deveriam ser tombadas como forma de proteção e que a canção “Carinhoso”, cuja letra é uma obra-prima, não poderia sofrer alteração, nem que fosse para uma situação como esta, que é apenas temporária. Disse ainda que os autores desta mutilação, aproveitando este oba-oba da Copa do Mundo em que tal propaganda foi veiculada, prestaram um desserviço ao Brasil, pois nossas crianças aprenderiam a música errada.
Finalizou dizendo: “Buenão, imagine você acordar numa bela manhã e, passeando pelo Centro da cidade, batesse de cara com nosso Theatro Pedro II com a fachada totalmente modificada por uma arquitetura linda, moderna, mas apagando todo seu passado histórico”.
Pois é, querido amigo Cleto, coloquei seu desabafo no papel e até concordo contigo, fico imaginando quem da família Bra­guinha autorizou esta mexida na letra, torço para que não aconteça mais com outras músicas históricas.
A história que contei de como “Carinhoso” foi composta vem esclarecer para muitos que não fazem ideia de como acontecem certas parcerias, e é por isso que em todos os encartes de antigos LPs e CDs o nome de quem faz a música vem sempre antes de quem faz a letra, como, por exemplo, “Detalhes”, de Roberto e Erasmo Carlos, “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, “Sentimental demais”, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. A música nunca pode ser modificada, mas a letra sim, e assim segue o jogo...


* Cantor e compositor