sexta-feira, 18 de julho de 2014

Tá faltando talento

Bueno *

Há alguns dias recebi um e-mail do meu querido e grande amigo Cleto, talentoso publicitário que também se aventura nas cordas de um cavaquinho. No tempo em que eu cantava no Restaurante Ponto Chic, ali na avenida Antonio e Helena Zerrener, na esquina com a rua Amapá, Cleto, frequentador assíduo, armava enorme mesa com amigos e famílias.
Eles jantavam, tomavam aquela cerveja no ponto e quando sentia-se no clima, Cleto retirava do estojo seu cavaquinho – dizia ter sido feito a mão por um artesão carioca. O apelido do instrumento era “Carioquinha”, é menor que os tradicionais, mas seu som era de se admirar.
Cleto se acomodava num canto do palco, abraçava seu pequenino parceiro, olhava pra mim e dizia: “Buenão, me dá um dó maior.”  Em seguida atacava com sua música preferida, “Carinhoso”, de Pixinguinha, com letra de João de Barro, o “Braguinha”. Eu o acompanhava com meu violão e meu parceiro Gercinho na timba.
Esta música foi escolhida como a canção do século, concorrendo com grandes clássicos brasileiros, ela ganhou de goleada. Pixinguinha a compôs em 1917 e sempre a tocava em suas apresentações. Por onde fazia shows, Braguinha, que na época era um jovem advogado, ia prestigiar e ouvir a música que tanto adorava, até que em 1931 pediu autorização ao músico para colocar letra em “Carinhoso”, que até então não tinha. Assim nasceu este clássico brasileiro.
Pois bem, no e-mail que Cleto me enviou, colocou toda sua indignação porque uma agência de publicidade deste nosso país usou sua música preferida para divulgar certa marca de carro, mudaram a letra enaltecendo a marca do veículo. Meu missivista até achou que os caras tiveram uma sacada legal, só não aprovou o fato de que mutilaram um clássico brasileiro, a letra da música.
Cleto foi até mais fundo dizendo que certas músicas brasileiras, como esta em apreço, deveriam ser tombadas como forma de proteção e que a canção “Carinhoso”, cuja letra é uma obra-prima, não poderia sofrer alteração, nem que fosse para uma situação como esta, que é apenas temporária. Disse ainda que os autores desta mutilação, aproveitando este oba-oba da Copa do Mundo em que tal propaganda foi veiculada, prestaram um desserviço ao Brasil, pois nossas crianças aprenderiam a música errada.
Finalizou dizendo: “Buenão, imagine você acordar numa bela manhã e, passeando pelo Centro da cidade, batesse de cara com nosso Theatro Pedro II com a fachada totalmente modificada por uma arquitetura linda, moderna, mas apagando todo seu passado histórico”.
Pois é, querido amigo Cleto, coloquei seu desabafo no papel e até concordo contigo, fico imaginando quem da família Bra­guinha autorizou esta mexida na letra, torço para que não aconteça mais com outras músicas históricas.
A história que contei de como “Carinhoso” foi composta vem esclarecer para muitos que não fazem ideia de como acontecem certas parcerias, e é por isso que em todos os encartes de antigos LPs e CDs o nome de quem faz a música vem sempre antes de quem faz a letra, como, por exemplo, “Detalhes”, de Roberto e Erasmo Carlos, “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, “Sentimental demais”, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. A música nunca pode ser modificada, mas a letra sim, e assim segue o jogo...


* Cantor e compositor

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