sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Faz nove anos

Bueno *
O tempo, tempo que, às vezes, parece uma eternidade e, em outras, apenas alguns minutos, parece que voa aqui na terra, tanto que no dia 17 de agosto de 2014, domingo próximo, este tempo será de nove anos sem meu amado filho Lucas Bueno.
Já escrevi crônicas aqui e, ao botar no papel, emocionei-me. Desta vez vou tentar não chegar a tanto, até porque, notícias que recebo e que vêm do outro lado da vida, dão conta de que Lucas está superbem, ele faz parte da equipe de jovens que o socorreram no acidente daquela manhã, na estrada que liga Ribeirão Preto a São Carlos, meu filho foi o último a integrar a equipe.
Hoje, onde acontece acidentes em que jovens vêm a falecer, lá está ele com seus amigos levando esclarecimento para suas chegadas em outro plano. Muita gente não acredita, mas eu não tenho nenhuma dúvida.
Muitas vezes me peguei analisando atitudes dele antes de sua partida e hoje até acho graça, como o dia em que parou em frente à nossa casa e, quando abriu a porta, vi a chave de roda do lado do seu banco. Perguntei: “Lucas, o que esta chave está fazendo aí, meu filho? O lugar dela é junto ao estepe.” E ele, mudando seu humor, disse: “Ô, pai, deixa pra lá”.
Quando ele saiu de perto, sua namorada me falou, quase em murmúrio, que ele tinha a mania de parar o carro de repente e reapertar as rodas. Isto me deixava encucado e hoje até acho graça. Divirto-me muito ao lembrar de nossas brigas musicais, que me deixavam com a cuca fervendo às vésperas de algum show, em que sempre cantava um grande nome da nossa MPB.
Agendava as apresentações com três meses de antecedência, Lucas me auxiliava a escolher o repertório, depois num CD gravava música por música seguindo a sequência do show e entregava uma cópia para cada músico, junto com o a relação que ele batia e xerocava.
Marcamos um show para o Bar do Val, “Bueno canta Chico Buarque”. Os dias passavam, em casa eu observava Lucas que parecia não se preocupar em “tirar” as músicas, e como sei que as harmonias das músicas do Chico são supercom­plicadas, fui falar com ele, que não aceitou minha cobrança.
Armamos um barraco daqueles de pai e filho, e no auge do bate-boca ele disse: “Arranje outro pianista, eu não vou tocar com você.” Na hora da raiva, emendei que também não o queria mais no palco. Quando a poeira baixou cai na real de que não teria tempo hábil para outro nomear um substituto. Minha primeira-dama tentava convencê-lo a recuar, e nada.
No dia seguinte, já bem humorado, ele perguntou se eu já tinha encontrado um novo pianista, pois ele tinha que passar-lhe as músicas. Daí joguei pra cima dele uma conversa cheia de “rasgação de seda”, tipo: “Olha, Lucas, até que encontrei, mas um pianista como você não existe, meu filho, o músico do show tem que ser você.”
Percebi que meu argumento mexeu com seu ego, daí ao xeque-mate foi um segundo, ele riu cheio de orgulho, pois também não queria ficar fora e na hora me disse: “Pai, vamos marcar o estúdio para os ensaios.” Só sei que este show foi um dos últimos na companhia dele, parece que alguém lá de cima me dizia: “Buenão, grave este show”. Foi o que fiz, não tenho dúvidas de que foi nosso melhor show, até Sócrates ficou empolgado, subiu no palco e cantou “A Rita”, de Chico Buarque.
Por estas e outras histórias contadas aqui, a vida segue e saudades surgem do nada apertando meu peito, porém, sei que tem que ser assim, também sei que ele está sempre por perto, olhando por mim.
Na semana passada, quase nove anos depois, me chega a notícia de que a rua dois do “Condomínio Colina do Golf” irá se chamar Rua Lucas Eduardo de Melo Bueno... Meu filho terá seu nome eternizado.

* Cantor e compositor

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Herói? Herói foi meu pai

Bueno *
Faz algum tempo, fui cantar na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, bem longe da minha querida Ribeirão Preto, acho que quase 500 quilômetros. Era sábado, véspera do Dia dos Pais. Amanheceu, fomos até São João Del Rei, uma cidade pequena, linda e histórica onde uma tradição é mantida: de sua antiga estação ferroviária parte uma linda maria-fumaça, um trenzinho muito charmoso todo pintado com detalhes tradicionais e que por doze quilômetros vai sacolejando, apitando e tocando seu estridente sino, por entre montanhas e paisagens cinematográficas que encantam o mundo todo. E assim segue até Tiradentes.
Chegamos na estação de São João Del Rei, a imponente maria-fumaça estava parada esperando o horário da partida. Eu olhava atentamente ela funcionando, tipo fazendo aquecimento, de repente um arrepio transitou pelo meu corpo todo. Olhei para o maquinista, estava na pequena porta com seu terninho azul marinho e seu quepe na cabeça, tudo como antigamente. Pedi autorização para fazer umas fotos com ele dentro da velha máquina. Como todo bom mineiro, educadamente ele atendeu meu pedido, entrei naquele pequeno espaço, fiz as fotos, depois fechei os olhos e como que por encanto, viajei para um tempo que levarei em meu coração para sempre.
Era o tempo em que meu velho pai pilotava sua maria-fumaça, era maquinista da Estrada de Ferro Mogiana, ~bateu a sensação de vê-lo soltando o freio da velha máquina, puxando a alavanca e colocando-a em movimento. Assim via os trilhos surgindo metro por metro, até sumir no horizonte. Meu velho pai também tinha um quepe com emblema da companhia, vivia sempre com pequenos furos causados por fagulhas que saiam da chaminé da sua barulhenta amiga.
Minha amada e saudosa mãe, todas as vezes em que meu pai chegava das viagens, lavava suas roupas, que também vinham com alguns furinhos. Depois de secas, passava linha na agulha e caprichosamente fechava furo por furo.
Meu pai se chamava Rosemiro Bueno, mas tinha um apelido que ele gostava e eu também: Rói, assim era chamado por onde passava, nem sei de onde tiraram este apelido, eu pensava ser dos gibis que lia, tinha um cowboy de nome Roy Rogers, daí associava meu velho com o herói em quadrinhos.
O velho Rói começou como ajudante de maquinista. Era ele que, com seus braços fortes, alimentava as fornalhas  – na época o trem era a vapor, tocado a lenha que ficava empilhada logo atrás. Eu, menino, tinha a maior admiração por meu pai, me lembro de que tinha quatro anos de idade quando ele foi transferido para a cidade de Cajuru.
Morávamos na colônia da companhia e a linha férrea passava a poucos metros da nossa casa, em frente a uma enorme caixa d’água que abastecia todos os trens. Alçi eu brincava com meu irmão Rubens, que apelidei de “Du” por ter dificuldade de pronunciar seu nome. Na época, Du estava com dois aninhos, mostrava pra ele nosso pai comandando a heroica maria-fumaça, que fazia muito barulho e soltava fumaça por todos os lados, dizia eu, todo orgulhoso, ao meu pequeno irmão:
“Du, é nosso pai que está ali dentro, é ele que faz este enorme trem andar”, dizia. E lá ia o velho Roi se distanciando, nos olhando, e antes que a maria-fumaça sumisse numa curva ao longe, nosso pai acenava e abanava seu quepe, voltando dias depois. A velha máquina era lenta e qualquer distancia, por mais perto que fosse, o retorno era demorado.
A vida seguiu e vieram modernas locomotivas, mas deste conforto meu velho pai pouco desfrutou, ficou doente e nos deixou faz muito tempo, tempo que nem percebi, pois o sinto sempre por perto e sei que de onde ele está, torce por mim. Meu pai criou seis filhos honestos. Vejo na TV algumas pessoas serem rotuladas de herói, daí lembro-me do velho Rói e falo baixinho só pra mim: “Herói? Herói foi meu pai.”
* Cantor e compositor


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Compadre Apolinário, saudades do amigo

Bueno *
Dia desses acordei, fiz minhas orações e de repente veio em minha mente a imagem do meu querido amigo Eurípedes Apolinário, radialista, apresentador de TV e responsável pelo sucesso de inúmeras duplas sertanejas. Mas, como diz outro querido amigo, Rolando Boldrin, Compadre Apolinário viajou antes do combinado, em 2 de maio passado fez dois anos que ele nos deixou. Sempre digo que Deus tem sido muito bom pra mim colocando em meu caminho pessoas maravilhosas e de coração puro, e Apolinário foi um deles.
Eu era guarda rodoviário, ele sempre parava comigo nas es­tradas e a gente batia aquele papo, sempre sobre música que é uma das minhas paixões. Num domingo, lembro-me bem, ele e sua caravana de artistas sertanejos regionais voltavam de um show na cidade de Pitangueiras e pararam na base da Polí­cia Rodoviária de Sertãozinho para uma água. Por acaso lá estava eu trabalhando.
Neste dia conheci os Irmãos Moreno, que durante a semana eram pedreiros, mas aos sábados e domingos aquelas mãos calejadas pelo árduo trabalho de amassar reboque carinhosamente abraçavam suas violas, e com perfeitas duas vozes, cantavam por aí o melhor de Tião Carreiro & Pardinho. Junto deles também estava André Bueno, um menino ainda de apenas nove anos de idade e que já tocava violão e acordeom e também cantava. Hoje um vitorioso empresário com seu maravilhoso estúdio, André fala de Apolinário com carinho e saudades também.
Apolinário tinha um programa na Rádio 79 que chamava “Afinando a Viola”. A audiência era tamanha que, naquela época, qualquer dupla, se quisesse alcançar sucesso, tinha que passar pelas mãos deste protetor e promotor de artistas. Com ele não tinha esse negócio do famigreado “jabá”, não, que é o responsável pelo sumiço de músicas de qualidade, tanto na área sertaneja quanto na MPB.
Nos dias de hoje, dois sujeitos lá de Goiás se juntam, gravam um CD, vestem uma roupa de grife, alguém banca, lotam um caminhão de dinheiro e despejam nas rádios, que tocam suas músicas dia e noite, fazendo assim a maior lavagem cerebral que já ouvi. Daí nossos jovens entram na onda e acontece de mais um lixo musical sufocar mais ainda a boa música.
Ao lado de um grande homem sempre está uma grande mulher e ele tinha esta mulher, Lina Dornela, que estava com ele pro que der e vier. Tiveram um filho, Thiago, hoje médico psiquiatra formado pela Universidade de Sâo Paulo (USP). Lembro-me bem do dia em que Thiago passou no vestibular, a alegria do radialista era tanta que contagiou a todos da Radio 79 e da TV Thathi, onde eu também tinha um programa, o“Canta Ribeirão”.
Apolinário também apresentava um programa na TV Re­cord de Franca e convidou-me pra cantar. Lá fui eu cantar “Pin­go D’água”, gravação de Tonico & Tinoco. Nesta noite che­gou também pra cantar uma jovem e desconhecida dupla de Brotas, era a primeira apresentação deles na TV, começava ali a carreira de João Paulo & Daniel. Mais uma vez, tinha que ser pelas mãos de Compadre Apolinário, que já havia alavancado as carreiras de Chitãozinho & Chororó – até hoje, em seus shows, fazem agradecimento ao velho apresentador –e de Leandro & Leonardo.
Fui visitá-lo numa tarde na Rádio 79 e o apanhei dando enorme risada. Estava com um LP de Milionário & José Rico nas mãos e ao me ver, disse: “Buenão, veja só a rima que o Zé Rico me arrumou... Quando acordei não te vi, que ‘desespeiro’, minhas lágrimas molharam a fronha do meu travesseiro”. Aí Zé Rico escorregou no português. Ri um bocado com ele, este “desespeiro” era a razão de seu riso. Foi sua criação também a Orquestra de Viola Caipira Mistura Boa, aqui em Ribeirão Preto, com o violeiro Augusto na batuta. É como disse o poeta: “O nome a obra imortaliza”. Meu querido amigo Eurípedes Apolinário, você deixou marcas...

* Cantor e compositor